Pensar a tradução nos coloca diante de perguntas curiosas. Conheço “As versões homéricas”, de Borges, há pelo menos 15 anos, quando o professor Walter Carlos Costa o discutiu com a turma na graduação. É um texto que tem grandes momentos. Um deles, que acabo de citar por enésima vez, é esse:
“Presuponer que toda recombinación de elementos es obligatoriamente inferior a su original, es presuponer que el borrador 9 es obligatoriamente inferior al borrador H – ya que no puede haber sino borradores.”
Nunca tinha pensado na questão do rascunho 9 e o rascunho H. Borges, que não deixa nada ao acaso, usou duas categorias diferentes para não estabelecer uma precedência. Se ele falasse dos rascunhos 9 e 14 a crença positivista na melhora progressiva poderia levar a supor que 14 deve ser melhor por ser posterior. O preconceito da inferioridade da tradução, derivado da crença moderna na superioridade do ato criativo e um entendimento leviano do ato tradutório como não criativo, poderia levar à pressuposição contrária: o posterior inferior ao anterior. Dois rascunhos tirados ao acaso de séries diferentes e abstratas, como são os números naturais e as letras do alfabeto, atalhariam essas inclinações contumazes.
Creio que esse nível de abstração é suficiente para um leitor cooperativo entender o ponto. Porém, persiste a possibilidade de um leitor desconfiado averiguar que número de letra é H no alfabeto para dilucidar a precedência, e eis que aparece a malícia textual de Borges: a letra H era a nona letra do alfabeto vigente na língua espanhola naquela época, e até uma década atrás (de 1754 a 2010), pois o dígrafo “CH” tinha seu lugar entre o C e o D.
Borges parece adotar uma postura lúdica, comparando dois rascunhos que ocupam o mesmo lugar nas respectivas séries. Isto tem toda a aparência de uma piscadela: por esse caminho, o rascunho 9 e o rascunho H poderiam até ser o mesmo rascunho, se o sistema de numeração for indiferente. Isto leva à famosa equiparação conceitual entre original e tradução promovida por Borges a percepção de identidade entre ambos.
Como os tradutores lidam com isso? Eu gostaria de saber, e foi a leitura da tradução em português de Josely Vianna Baptista, que se refere aos rascunhos 9 e H, que suscitou esta pequena reflexão:
“Pressupor que toda recombinação de elementos é obrigatoriamente inferior a seu original é pressupor que o rascunho 9 é obrigatoriamente inferior ao rascunho H — já que não pode haver senão rascunhos.”
O mesmo ocorre com a de Eliot Weinberger, para o inglês:
“To assume that every recombination of elements is necessarily inferior to its original form is to assume that draft nine is necessarily inferior to draft H-for there can only be drafts.”
Tanto em português quanto em inglês, o H é a oitava letra do alfabeto. A tradução de “borrador H” como “rascunho H” e “draft H” desfaz, em certa medida, a possibilidade de identidade entre original e tradução. De fato, na última reforma ortográfica da língua espanhola, há 10 anos, as letras CH e LL perderam seu lugar no alfabeto, passando a ser apenas dígrafos. As próximas gerações de leitores hispânicos terão um pouco mais de dificuldade para levantar essa relação no texto borgiano. Acredito que ninguém proporia atualizar o texto em espanhol em função dessa mudança. Mas e quanto à tradução?
Me pergunto se alguém terá traduzido como rascunhos 8 e H, ou de outro modo análogo. E também como terão feito os tradutores de “As versões homéricas” para línguas de escrita não alfabética, ou de alfabeto não ocidental. Se você tiver informações, agradeço que as compartilhe.
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Edições consultadas:
Jorge Luis Borges. “Las versiones homéricas”. In: Discusión. 3.ª ed. Madrid: Alianza Editorial; Buenos Aires: Emecé Editores, 1983, p. 89–95.
Jorge Luis Borges. “As versões homéricas”. Tradução de Josely Vianna Baptista. In: Discussão. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 103–110.
Jorge Luis Borges. “The Homeric Versions”. Tradução de Eliot Weinberger. In: Eliot Weinberger (ed.) . Jorge Luis Borges: Selected Non-Fictions. Traducción de Esther Allen, Suzanne Jill Levine & Eliot Weinberger. New York: Penguin, 1999, p. 69–74.
Imagens de Borges retiradas de Wikimedia Commons: Versão H (fotografia anônima), Versão 8 (Fotografia: Grete Stern), Versão Θ (Fotografia: Sara Facio), Versão VIII (Pintura: Adolf Hoffmeister), Versão Ж (Escultura: Gabriel Sozzi)
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Agradeço a Walter Carlos Costa a discussão de “As versões homéricas” em sala de aula e a informação sobre a tradução de Eliot Weinberger.
